quarta-feira, 25 de abril de 2012

“IR ATÉ À MARÉ”

Um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra dedicava-se, como o seu nome indica, às tarefas de carga e descarga dos mais variados volumes, principalmente fardos de cortiça e sacas de cereais.
É 24 de Abril de 2012.
Amanhã faz 38 anos que Portugal mudou.

Não sei muito sobre os pormenores da história do Montijo.
Mas nasci aqui e sempre aqui vivi.
Fui testemunha das transformações que foram ocorrendo.

Nasci no Bairro Serrano.
Parte da minha infância passei-a brincando na rua. O meu amigo Alexandrino era o meu principal parceiro de brincadeira.
Rondávamos parte do dia junto da taberna do Joaquim Foni, era assim que a conhecíamos. O edifício ainda existe, na que é agora a Rua das Forças Armadas, outrora 28 de Maio.
A taberna era frequentada, durante o dia, principalmente por um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra.

 Um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra era constituído por um grupo, mais ou menos homogéneo, de homens que se dedicavam, como o seu nome indica, às tarefas de carga e descarga dos mais variados volumes, principalmente fardos de cortiça e sacas de cereais.
Essas mercadorias chegavam e partiam do Montijo, na sua maioria por via fluvial, em fragatas e batelões, e que depois circulavam na nossa agora cidade até aos seus destinos, em carroças e galeras. As galeras eram carroças maiores, com quatro rodados e puxados por uma parelha de cavalos.
Estamos em finais dos anos 50.

Vou até à maré, diziam.Ir até à maré significava ir até junto do rio, tentar adivinhar movimento, tentar avistar fragatas ao longe. Talvez isso pudesse trazer trabalho
Havia um Sindicato dos Descarregadores de Mar e Terra que funcionou muito tempo nessa mesma rua vindo, depois a mudar para a Rua Miguel Pais.
Esses homens trabalhavam quando havia algo para carregar e descarregar. Fora isso, permaneciam na taberna,
Jogavam os mais capazes à sueca, à copa e à bisca de 9. Os outros à ronda e ao “acuso”.
Jogava-se também à bisca de 6 ou de sinais, onde dois “mandantes”, recebiam os sinais dos parceiros e comandavam as vazas. Para nós, a astúcia e os truques estratégicos desses mandantes deixavam-nos fascinados.
Bebiam-se copos de vinho, de aguardente ou “traçadinhos”, uma mistura de aguardente e vinho abafado.
Bebia-se fiado.
O Tio Joaquim, que nunca vi traçar um número, tinha os seus próprios algarismos, constituídos por bolas, cruzes e traços. Nas faces das pipas, a giz, ia registando com a sua grafia a dívida de cada um.

Estes homens ganhavam à peça. Tanto por fardo, tanto por saca, etc.
Quando chegavam ou partiam mais fragatas, ganhavam mais. No inverso, ganhavam menos, ou nada.
Havia um chefe, naquele caso o dono das carroças e galeras, que seleccionava a quantidade de homens necessária ao desempenho das tarefas, contabilizava o que cada um ia acumulando e pagava, normalmente no final da semana.
Nesse dia de receber, parte do dinheiro servia para pagar os fiados e o Tio Joaquim lá apagava a totalidade ou parte das bolas, cruzes e traços de cada um.

Os mais afortunados faziam-se transportar numa bicicleta ou calçavam alpargatas, os outros andavam a pé e descalços.
Existia também uma hierarquia: Os mais velhos e assíduos constituíam o núcleo do rancho. Eram normalmente os que eram mais vezes escolhidos, trabalhando por isso mais vezes, logo ganhando mais. Os outros, ficavam “às deixas”. Se fosse hoje, dir-se-ia estar no fundo da escala social.

Quando as bolas, cruzes e traços do tio Joaquim ameaçavam ultrapassar os extremos das pipas, acabava-se o fiado para o devedor, e ele deixava de jogar às cartas passando a fazer parte, tal como eu e o Alexandrino, do círculo de espectadores.
Eram esse que, por vezes cansados de nada fazerem, se levantavam e saíam.
Vou até à maré, diziam.

Ir até à maré significava ir até junto do rio, tentar adivinhar movimento, tentar avistar fragatas ao longe.
Talvez isso pudesse trazer trabalho.
Talvez pudessem abater parte do fiado.
Talvez levar algum dinheiro para casa e abater também parte do rol na mercearia.

Alguns destes homens foram chamados a combater na guerra colonial.
Outros, subiram na tal escala social e foram trabalhar para as fábricas.
Uma grande parte emigrou, por vezes a salto.

Cresci e brinquei junto a esta taberna.
Conheci estes homens que comigo brincavam e me ensinavam “a escola toda”.
Aprendi a respeitá-los.

Ouço por vezes dizer que antigamente é que era bom. Que havia trabalho para todos.
Havia trabalho, mas não era para todos.
E a miséria era muita.
Vou até à maré, diziam os excluídos do Tio Joaquim.
Mas os tempos eram outros, dirão alguns, em todo o lado era assim!
É mentira.

Muitos dos que emigraram regressavam passados poucos anos com uma vida diferente. Vestidos, calçados e ao volante dos Simcas e Renaults da altura, comprados em segunda mão.
Contavam como foi difícil o início mas como foram apoiados na escolha de uma casa e como dispunham de escolas para os filhos e todo um apoio social para a família.

Senti vontade de falar destes homens nas vésperas de mais um dia 25 de Abril.
Gostava que ninguém mais precisasse de, como eles, “Ir até à maré”

 24 de Abril de 2012

Manuel Barrona




3 comentários:

  1. Uma bela interpretação de um tempo passado, não muito distante, diferente do actual, como não podia deixar de ser. Tudo isto tem de ser analisado sem anacronismo, sem as muletas do antes é que era bom, ou dantes é que era sofrer até mais não. A vida não pára. Como diz o filósofo e cientista, tudo se transforma. As coisas estão dependentes umas das outras, porque disse o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, isto anda tudo ligado. Os militares (instituição), que fizeram o 25 de Abril, sustentaram a ditadura 40 anos e nunca derrubaram o verdadeiro ditador, mas um sucessor mais macio, que estava perto da transição como sucedeu em Espanha. Só o tempo é eterno, e não passa de um conceito criado pelo homem para se orientar, mas como ideia, é imaterial e não existe. Porque tudo o que tem existência morre, para dar lugar a novos corpos, sempre diferentes e sempre mutáveis. É bom recordar o passado. É bom rever as raízes. Diria mais, é urgente e necessário, agora mais do que nunca. Parabéns e um grande abraço com estima e consideração.

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  2. Este texto do Barrona é algo que me diz muito, que me reporta para a minha infância, também. Eu vivi tudo o que o meu amigo Manel aqui apresenta. Vivi, porque o meu saudoso avô foi Descarregador de Mar e Terra, assim se denominava a profissão, e porque o acompanhei durante toda a vida comum. Vi-o de saca de cereais ou fardo de cortiça à cabeça; vi-o pegar em cargas com o dobro do seu peso; vi-o "gastar-se" num esforço desumano para conseguir o parco dinheiro, que pagava as despesas da casa e os "copitos" na taverna. Mais das vezes no Xico Cavala, no cais, mas também noutras, como as do Ti Foni, que conheci muito bem, já depois de ter largado a vida de taberneiro. Vi-o, depois, na fase "boa", a trabalhar na Corticeira Ibéria, sem necessidade de esperar pelas fragatas e faluas, porque tinha trabalho certo.
    Com ele aprendi a conhecer e nomear todas as peças que compunham uma embarcação; com ele conheci todas as figuras que "habitavam" o Cais. De Descarregadores a Arrais e Companhas - assim se chamava aos demais membros da tripulação desses belos veleiros que enchamearam o Tejo - até aos outros, que menos bafejados pela sorte, se tornaram peças "decorativas" na moldura humana que era o Cais.
    Era, se calhar, o único miúdo que por ali andava - não recordo mais ninguém - e lembro, com enorme saudade, o carinho que me dispensavam e o respeito que lhes tinha. Sim, nesse tempo, ser mais velho significava ser-se respeitado, mas também respeitar! Hoje, talvez pelo Acordo Ortográfico também, Respeito foi banido do nosso léxico! Por tudo isto, mas por outras coisas que ficam por dizer, porque este texto já vai longo demais, agradeço ao Manel a bela peça.
    Os tempos mudaram. Mas para se perceber o que acontece hoje, é necessário conhecer o "ontem". Com muita miséria é verdade, mas com uma grande riqueza, o calor Humano!

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    1. Ressalva: Certamente já repararm no "terrível" erro ortográfico que cometi. Onde está "enchamearam", devia estar, obviamente, "enxamearam". Obrigado!

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