domingo, 26 de fevereiro de 2012

Escravos, Negros e Índios, em Aldeia Galega do Ribatejo

Vista actual da cidade de Lagos, onde Gomes Eanes de Zurara
                                descreveu, em 8.08.1443, o desembarque  de 235 escravos.

«Qual o coração, por duro que fosse, que não ficasse pungido, vendo aquele acontecimento?», Interroga (-se) Gomes Eanes de Zuarara ao testemunhar o desembarque de duzentos e trinta e cinco escravos, levado a cabo no dia 8 de Agosto de 1443.

Confessa o cronista, que chorou perante o quadro que se desenrolava na praia de Lagos, que, à medida que os escravos iam desembarcando, via-se que «uns estavam cabisbaixos e com os rostos lavados em lágrimas; outros murmuravam muito dolorosamente contemplando o céu, fixando os olhos nele como se pedissem socorro a Deus; outros feriam os seus rostos lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam as suas lamentações à maneira de canto correspondendo ao grau da sua tristeza.»

Mas o momento mais lancinante aconteceu quando, para se formarem quinhões iguais para serem repartidos pelos vários intervenientes no negócio, se apartaram os filhos dos pais, as mulheres dos maridos, os irmãos uns dos outros. Como retratou Zurara:

 «A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava. Os filhos que eram separados dos pais levantavam-se decididamente e iam ter com eles. As mães apertavam os filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas com pouca piedade de suas carnes, por não lhes serem tirados. O pai ficava em Lagos, a mãe era levada para Lisboa e os filhos para outra parte. A dor era maior naqueles que eram apartados dos familiares do que naqueles que, porventura, se mantinham juntos, porque “é consolo para os tristes ter companheiros na sua dor”.»


A História preencheu vários dos seus capítulos com as páginas ignominiosas da escravatura…

Aldeia Galega do Ribatejo, primitivo nome de Montijo, tornou-se, a partir do século XVI, num importante local de acesso a Lisboa e de passagem para os viajantes que demandavam o sul de Portugal ou os países da Europa.

O porto da velha Aldeia Galega do Ribatejo viu passar gente rica e gente pobre, gente ilustre e gente plebeia, gente livre e escravos. Escravos negros e índios, que por aqui transitaram muitos e se fixaram alguns.

Se não temos ainda uma apurada investigação que nos permita traçar as relações raciais em Aldeia Galega do Ribatejo, entre os séculos XVI e XIX, obtivemos já alguma informação que nos permite concluir da existência de escravos no Montijo, que trabalhariam sobretudo nas quintas, e que alguns deles, à medida que foram alcançando o estatuto de homem livre, se integraram na comunidade aldeana.

As primeiras referências que alcançamos são de ordem obituária. E logo aqui a surpresa de constatar que alguns desses escravos tiveram um funeral religioso semelhante aos demais habitantes livres, sobretudo aqueles que eram propriedade de irmãos da Santa Casa da Misericórdia ou de pessoas amantes e tementes de Deus, que cumprindo uma das obras de misericórdia lhes davam na morte o conforto espiritual que não terão talvez alcançado durante a vida.

Por exemplo, ao lado de Isabel Silva, mulher livre natural de Aldeia Galega, enterrada no átrio da Igreja Matriz, na actual Praça da República, jaz “Salvador escravo índio de Fernão Gama”, que ali foi sepultado em 2 de Fevereiro de 1638 e cujo funeral cumpriu o mesmo ritual do que o daquela mulher.

Mas, o “Livro de acentos que se fazem dos mortos que as tumbas desta Santa Casa levão a sepultar”, da Santa Casa da Misericórdia do Montijo, regista que Maria, escrava de António Sebastião, foi sepultada em S. Sebastião, a primitiva igreja de Aldeia Galega, em 1625.

Igreja do Divino Espírito Santo, 1906.
No seu adro foram enterrados escravos.

No dia 30 de Dezembro de 1631 foi enterrada uma filha de “Manuel preto” e nesse mesmo ano ainda se registou o óbito de “Jerónimo, escravo de Francisco Alvarez. Francisco Gomes, o preto, barqueiro, faleceu em 23 de Agosto de 1636, e, dois anos depois, António, escravo de António Francisco foi sepultado no adro da igreja matriz.

Por deferência e amabilidade da Dr.ª Isabel Oleiro Lucas, ficámos a saber que “Isabel escrava preta do Padre Roiz da Atalaia está aterrada a Santo António”, conforme regista o Livro de Óbitos de 1570.

Terão sido casos excepcionais? Negros e índios descansam para sempre nos adros das igrejas do Divino Espírito Santo, de S. Sebastião e de Santo António, sepultados pela tumba ordinária da Santa Casa da Misericórdia, que despendia “com a mortalha e cova para um preto – 820 réis.”

Não deixavam, porém de ser escravos, pois só a morte os libertava do jugo dos seus senhores, que, temendo o castigo celestial, lhes concediam a dignidade de um funeral. Esses mesmos proprietários que, para serem admitidos como Irmãos da Santa Casa da Misericórdia tinham de declarar – e provar – que “não tinham sangue de mouro, nem de judeu, nem de outra infecta nação.”

Os escravos, negros, mulatos, índios e mouros, ocupavam-se dos trabalhos agrícolas e domésticos, mas os que alcançavam a alforria – quantos? – podiam buscar outras ocupações.

No século XVIII, os fogaréus das procissões eram transportados por negros, que recebiam 70 réis pelo desempenho e, um pouco mais tarde, os africanos participariam activamente nos espectáculos taurinos.

Embora se tenha tornado usual e aceite pela ideologia da época o comércio de escravos, tendo a Igreja concordado com a utilidade da conversão dos pagãos, o Padre Fernando de Oliveira não deixou de criticar, em 1555, o tráfico de escravos, usando palavras acutilantes:

«não se acha, nem razão humana consente, que houvesse no mundo contratos públicos de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias/bois ou cavalos e semelhantes. Assim os tangem, assim os constrangem, trazem e levam e provam, e escolhem com tanto desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no curral.”

Ruki Luki






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